Reality show, reprogramação do corpo e produção de esquecimento
Por Ilana Feldman
O fenômeno dos reality shows em seus já clássicos modelos de confinamento parece viver uma mutação. As famosas “casas”, que mais se assemelham, em sua lógica de funcionamento, a empresas em dias de testes de recrutamento, “atividades vivenciais” ou “motivacionais”, têm dado lugar a ambientes híbridos e flexíveis. Se antes imperava a vigilância contínua e sua internalização, em uma disputa desesperada por recompensa financeira e reconhecimento visual-social, vê-se, agora, a intensificação da modulação permanente, modulação de novas formas de ser, agir e sentir e, mais explicitamente, modulação de novas formas de se ter um corpo.
Reality shows de intervenção são, assim, as audaciosas e frutíferas apostas da TV brasileira. Há hoje 13 programas (contabilizando as TVs aberta e a cabo) em exibição e uma estréia prevista. Seja importando programas norte-americanos, seja produzindo seus pares, as intervenções extremas (caso das cirúrgicas) ou brandas (transformação de ambientes e habitantes) apontam para questões cujas respostas não deveriam ser livradas ao acaso.
Paula Sibilia, autora de “O homem pós-orgânico – Corpo, subjetividade e tecnologias digitais”, perguntaria: “O que estamos nos tornando? O que gostaríamos de nos tornar?”. Sob o domínio da tecnociência contemporânea, da engenharia genética e da inteligência artificial, “ainda é válido persistimos dentro das margens do conceito de homem? Ou, pelo contrário, seria preciso reformular essa noção herdada do humanismo liberal e inventar outras formas, capazes de conter as novas possibilidades que estão se abrindo?”, continuaria.
Não seria exagero crer que esses reality shows de intervenção estejam, simultaneamente, apontando e respondendo a uma demanda de ultrapassagem do orgânico, demanda de reformatação de corpos, comportamentos, mentes e, até, de reprogramação da memória. Bem sabemos que não existe vida, muito menos programa de TV, inocente. Não existe intencionalidade apolítica. Retomando a justificativa de Paula Sibilia para sua empreitada, “não se trata de digressão gratuita, pelo contrário, trata-se de uma questão extremamente atual, com sérias implicações éticas e políticas”.
E quais seriam as implicações de “Extreme Makeover” (Sony), “I want a famous face” (MTV), “Beleza comprada” (GNT), “Queer eye for the straight guy” (Sony) e “Missão MTV” (MTV), para ficarmos em alguns títulos? O que há de aterrador e fascinante nessa materialização do sonho de autocriação humana, mesmo quando tal sonho nos traz gélidas lembranças dos projetos eugênicos da primeira metade do século XX?
Desta vez, porém, o projeto de autoconstituição, reformatação ou reprogramação dos corpos e da vida são, além de tecnicamente viáveis, demandados pelos próprios indivíduos, que pedem, quando não imploram, para serem motivados, excitados, turbinados, “plastificados” e totalmente reconfigurados. Sob os programas de intervenção cirúrgica, ganham novos narizes, novos seios, novas barrigas, novos estômagos reduzidos, novas faces novas e novos sorrisos iguais a todos os demais. Fazem lipos, liftings e peelings.
Sob os programas de transformação do ambiente e da aparência, ganham novas casas, novos móveis, novos guarda-roupas, novos cortes de cabelo, novos hábitos de consumo e, até, de higiene pessoal. Uma verdadeira pedagogia e tecnologia de como ser aceito e parecer belo, seguro, confiante e bem-sucedido está disponível. “É preciso mudar para que nos aceitemos como somos”, ouvimos tantas vezes dos participantes/personagens, assim como escutamos, ao final de cada intervenção/transformação, o agradecimento pela nova vida, pelo novo corpo, pelo “renascimento” e “recomeço”. “Agora posso recomeçar, começar tudo de novo”, nos diz uma personagem negra de “Extreme Makeover” que ganhou plástica para afilar o nariz e os lábios, além dos básicos silicone tamanho C nos seios e lipo na barriga. Agora todos podemesquecer quem foram.
A questão da memória é talvez a mais séria implicação política. Além da produção de “eus” espetacularizados nas superfícies dos corpos e das imagens, da produção de subjetividades seriadas, como kits-de-perfis tirânicos adquiridos no atacado, o que está em jogo, em última instância, é uma produção de esquecimento generalizada. Em “Beleza Comprada”, o personagem Pedro, conversando com sua mãe sobre as dificuldades de manter o peso, diz que mesmo depois da lipo (nas costas, no peito e na barriga) continuará gostando de comidas gordas porque continuará com “espírito de gordo”. Ela então lhe responde: “Mas aí é questão de memória. Você pode apagar essa e implantar uma outra”. E Pedro rebate: “Existe cirurgia pra isso?”. Ainda não, pensamos. Mas, se estivesse ao alcance das mãos, ele não hesitaria.
A tematização, ainda que alegórica, da paixão pelo apagamento em “Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças” (EUA, 2004) nos mostra que não é preciso uma ficção mirabolante para imaginarmos o dia em que contrataremos serviços de “esquecimento a domicílio”. Basta ligarmos a TV e perceberemos que a apologia da reformatação dos corpos e a desmaterialização dos mesmos em imagens implica também abrir mão da memória passada de cada corpo para que este seja um novo, que no futuro, a partir de uma próxima intervenção, será um ainda outro, como se com um novo corpo, um novo “chip de memória” estivesse sendo demandado, porque, afinal, para quem faz uma lipo, é necessário também se reprogramar para parar de comer como antes, ou, para quem emagrece 60 kilos, diz-se necessário esquecer quem foi e “começar do zero”.
O adeus ao “antes” e a celebração de “depois” -recurso inaugurado pelas revistas femininas- é também a expressão de despedida mais evocada nesses programas. Diz-se adeus, desde a narizes que vão embora até a sofás ou sapatos. “Nariz antigo? Nem me lembro mais!”, em “Beleza Comprada”, ou, “Eles dão adeus ao corpo pelo qual se apaixonaram”, em “Extreme Makeover”. Também não importa o possível valor afetivo de pertences pessoais, peças de roupa ou mobiliário. Se estiver fora de moda e não for um signo de alguém inserido e bem sucedido, alguém que represente sua categoria profissional e/ou social, os cinco gays de “Queer eye” ou a top Fernanda Tavares dirão “adeus!”. As fotografias antigas só não são completamente apagadas porque representam a prova cabal de quem se era, valor científico, portanto, para uso exclusivo dos profissionais da transformação.
Esses profissionais, em especial os cirurgiões plásticos, julgam-se artistas ou escultores em busca de uma forma perfeita, harmônica. Sob o paradigma da autocriação moderna, negam a aceitação resignada do legado da natureza e procuram constantemente recriá-la em seus “modelos”, arquitetando, graças ao instrumental da tecnociência, vidas e corpos. A beleza, de herança natural, transformou-se em direito e dever universal. Em “Extreme Makeover”, um dos cirurgiões plásticos explicita, enquanto manipula o rosto de uma personagem: “A nova Ângela será uma criação renascentista, esculpida pela medicina, arte e arquitetura. Da Vinci dizia que um artista deveria ser um bom pintor, escultor e arquiteto. Na cirurgia plástica é igual”.
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